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Violência contra a mulher: Lei Maria da Penha chega à maioridade como referência pro mundo

Violência contra a mulher: Lei Maria da Penha chega à maioridade como referência pro mundo

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Defensoria veicula nesta segunda-feira (5/8) primeira reportagem da série “Maria, Marias: 18 anos da Lei Maria da Penha”, que pauta a importância desse mecanismo legal de defesa da mulher. Defensoras, especialista no tema, integrante de movimento social, magistrada, vítimas e a própria Maria da Penha comentam aspectos sociais e legais e apontam caminhos para a legislação ser aperfeiçoada. Especial vai até sexta (9/8)

 

Texto: Bruno de Castro/ Foto: Déborah Duarte/ Ilustração: Valdir Marte

 

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia;
Uma força que nos alerta.
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta.”
(trecho da música “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, em 1978)

 

Criada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha chega à maioridade em 2024. São 18 anos de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, tempo no qual muita coisa se transformou. Inclusive a própria lei, hoje considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor do tipo no planeta – e, mesmo assim, ainda recebe melhoramentos. É aperfeiçoada para, em um mundo em constante transformação, alcançar cada vez mais mulheres. Afinal, numa sociedade machista como a brasileira, todos nós, homens, somos agressores em potencial e todas elas vivem sob o risco de serem vítimas.

Os números comprovam isso. A edição 2024 do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que 144.285 mulheres sofreram violência doméstica em 2022, com homens sendo os autores desses ataques em 86,6% dos casos. Já o mapa da Segurança Pública 2024, publicado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), alerta para o registro de 1.443 feminicídios em 2023, ano no qual o Ceará apresentou aumento de 44,83% neste tipo de crime em relação ao ano anterior (a quarta maior variação positiva do país).

Na Defensoria Pública do Ceará (DPCE), um reflexo da Lei Maria da Penha foi a criação do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, o Nudem. Desde 2010, milhares de vítimas já foram atendidas pelo equipamento, inicialmente restrito a Fortaleza, mas hoje presente no Cariri e em mais oito municípios do estado, fruto de parceria com as unidades da Casa da Mulher Cearense, do Governo do Estado. São muitas Marias que, pela atuação da DPCE, tiveram as vidas protegidas conforme a lei, que prevê uma série de punições ao agressor: desde a proibição de se aproximar da mulher até a prisão.

Só no primeiro semestre deste ano, a Defensoria registrou 8.463 atuações de proteção à mulher vítima de violência. Uma média de 1.290 procedimentos por mês. Há a projeção, portanto, de encerrar o ano de 2024 com quase 17 mil registros, o que representaria aumento de 53% em relação a 2023, quando todos os equipamentos contabilizaram 11.049 atuações (média de 920 por mês).

“Mas a Maria da Penha não é uma lei só para punir o agressor. Para isso, nós já temos o Código Penal. Ela vai além e dá um comando para tudo o que temos hoje. Fala de prevenção, campanhas de divulgação de direitos, elaboração de materiais educativos, construção de uma rede de apoio, criação de centros de referência… É uma lei que trata de políticas públicas para enfrentar uma situação complexa. Antes dela, ninguém sabia para onde ir e as vítimas ficavam desamparadas. Com ela, as coisas ganham sentido e os órgãos passam a ter orientações de como devem agir. Ao longo desses 18 anos, a lei vem sendo lapidada. É difícil imaginar como tudo seria sem ela. Não sei como as mulheres viviam”, avalia a supervisora do Nudem Fortaleza, defensora Jeritza Braga.

LEI CRIOU ESTRUTURAS E FOI AMPLIADA
Além do Nudem, foi graças à Lei Maria da Penha que o Brasil ganhou juizados, delegacias e núcleos especializados no combate à violência contra a mulher. No Ceará, essas estruturas fazem parte do Tribunal de Justiça (TJCE), do Governo do Estado (dentro da estrutura da Secretaria da Segurança e da Secretaria da Mulher) e do Ministério Público (MPCE).

Defensora Jeritza Braga

Desde 2018, mulheres trans e travestis vítimas de violência também passaram a ser atendidas nas Casa da Mulher, que reúne as instituições dessa rede de proteção. Um avanço importante diante da constatação de nosso país ser o que mais mata, em todo o mundo, essa população há 14 anos consecutivos, de acordo com estudo da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O Ceará é um dos estados com piores indicadores do Brasil para esse grupo.

“Vão sendo acrescentados à lei novos dispositivos na medida que vamos sentindo necessidade. No começo, falava-se que era suficiente a medida protetiva concedida pela Justiça obrigando o agressor a se afastar da mulher. Percebeu-se que não. Então, foi criado o crime de descumprimento de medida protetiva. O problema não acabou. Não é porque temos a Lei Maria da Penha que não tem mais violência contra a mulher. Não é isso. Mas a lei veio pra tentar dar um farol de como agir em meio ao machismo, que é uma chaga que temos que combater desde a escola, porque a violência está enraizada na nossa cultura. E cultura machista a gente combate com educação”, acrescenta Jeritza Braga.

Para ela, o tripé sociedade-estado-família precisa estar alinhado. No entanto, o que se percebe nos atendimentos nos quais a Lei Maria da Penha é citado é cada vez mais frequente os filhos relatarem episódios de agressões de toda ordem com mais e mais naturalidade. É como se estivéssemos naturalizando algo que deveria ser inaceitável. Ou, como a defensora pública define, “um crime contra a humanidade.”

“Porque a violência doméstica perpassa gerações. Se você tem em casa o exemplo do seu pai agredindo sua mãe e você é um menino, você vai achar natural bater. Se você for uma menina, você vai achar natural apanhar. A lei veio pra tentar romper esse ciclo. E uma grande conquista foi a recente decisão de que, para a Justiça conceder uma medida protetiva, não é necessário ter havido crime. Basta a vítima dizer que se sente desconfortável e tem medo daquele homem. Isso é importante porque, às vezes, você constrange, humilha e gera pânico numa pessoa só com o olhar… Pra mim, esse foi o maior ganho. Mas ainda tem muita coisa pra melhorar”, prossegue Jeritza.

GRANDES DESAFIOS
Atuante na Casa da Mulher Brasileira de Juazeiro do Norte, no Cariri, a defensora Jannayna Sousa Lima recorda que hoje agressores não podem mais ser punidos com o pagamento de cestas básicas. A Lei Maria da Penha prevê condenações mais severas, bem como ampliou a compreensão do que se entendia como violência doméstica. Antes, reconhecia-se apenas a agressão física. Agora, há o entendimento das modalidades psicológica, moral, sexual e patrimonial.

Defensora Jannayna Lima

Por isso, Jannayna pondera: “O aumento no número de casos registrados não necessariamente indica um aumento na violência. Pode ser um maior empoderamento das mulheres denunciando esses abusos. Mas nós ainda lidamos com a subnotificação, a lentidão judicial, a falta de estrutura em alguns órgãos de proteção e a resistência cultural como obstáculos que impactam na plena aplicação da legislação”.

Estudos indicam ainda que as mulheres vítimas de violência doméstica levam até dez anos para romper o ciclo de abusos. Muitas desconhecem os próprios direitos e sequer conseguem identificar que há violação para além do tapa ou do empurrão que recebem rotineiramente. Em recente pesquisa DataSenado, 76% das pessoas participantes admitiram não conhecer a Lei Maria da Penha ou sabem muito pouco sobre ela.

“É fundamental que sejam desenvolvidas campanhas de conscientização e informação sobre os direitos das mulheres e sobre as medidas previstas na lei. Só assim será possível garantir uma vida livre de violência para todas as mulheres. Falar sobre a Lei Maria da Penha é uma forma é essencial que continuemos a educar, conscientizar e agir para erradicar essa forma de violência”, acredita a defensora pública.

A MÃE DE TODAS AS VIOLÊNCIAS
Há 17 anos à frente do 1º Juizado da Mulher de Fortaleza, Rosa Mendonça classifica a Lei Maria da Penha como fundamental e afirma que seria muito difícil combater a violência doméstica e familiar contra a mulher sem esse dispositivo legal. “É um divisor de águas. Quando eu comecei, falavam que a lei era diabólica, que vinha só pra prejudicar os homens. A rede de atendimento era pequena e não funcionava como hoje. Era um funcionamento precário, que não atendia”, recorda.

A magistrada avalia que houve uma evolução considerável nas medidas protetivas nesses 18 anos da lei em vigor. Como exemplo, cita a possibilidade de o agressor ser encaminhado a um grupo de acompanhamento psicológico. “Porque é o comportamento do homem que eu tenho que mudar. E lei é baseada em comportamento. Sempre achei isso importante, mas as pessoas não entendiam e achavam que o foco deveria ser só na mulher. Hoje, a gente vê grupos trabalhando o psicológico dos agressores. Foi uma mudança muito importante.”

Ela também destaca a existência hoje de medidas protetivas para crimes virtuais, como o stalking (a perseguição on-line), fruto da atualização da lei e que funciona como mais uma frente de defesa da mulher, já que o acesso à Internet está cada vez mais popularizado e dispensa o contato físico entre os donos dos perfis (que é o que uma medida protetiva convencional tenta evitar). A juíza, no entanto, alerta para um aspecto da lei que, segundo ela, nunca foi trabalhado.

 

Juíza Rosa Mendonça (Foto: Divulgação/TJCE)

“Tem que incluir nos currículos escolares as questões de igualdade. Como o meio ambiente é uma matéria obrigatória, essas questões também deveriam ser: igualdade, respeito, violência, Lei Maria da Penha, tudo isso deveria ter do ensino fundamental ao superior. Se a gente não avançar nas políticas públicas, a gente não pode avançar na lei. Porque a Maria da Penha é uma excelente lei, mas a gente não consegue aplicá-la integralmente. E uma vítima de violência doméstica não é uma vítima qualquer. Tem que ter um olhar diferenciado, porque a violência doméstica é a mãe de todas as violências. De onde você acha que sai a violência social? De dentro de casa”, diz Rosa Mendonça.

SERVIÇO
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) Fortaleza
Endereço: rua Tabuleiro do Norte, s/n, no bairro Couto Fernandes (dentro da Casa da Mulher Brasileira)
Telefone(s): (85) 3499.7986