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‘Filha da violência’, Maria rompe o ciclo e se liberta

‘Filha da violência’, Maria rompe o ciclo e se liberta

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Na segunda matéria do Especial, trazemos histórias reais de mulheres que buscam atendimentos na Defensoria Pública e rompem ciclos de violência que vêm de gerações anteriores. Todas as personagens desta série serão chamadas de Maria, para não as identificar e também para enaltecer a luta de Maria da Penha, a ativista cearense pelos direitos de todas as mulheres. Especial vai até sexta (9/8).

 

Texto e foto: DEBORAH DUARTE
Ilustração: Valdir Marte

Maria sabe muito bem o que é violência contra a mulher. Desde os quatro anos de idade, tem memórias marcadas por cenas de agressão que a mãe sofria nas mãos dos companheiros. Aos 15 anos, um namorado da mãe tentou estuprá-la. Quando revelou o ocorrido, o homem a acusou de provocá-lo. O ciclo de abuso e machismo imperou até os 25 anos, quando ela decidiu dar um basta. Já estava nas garras de uma nova relação abusiva. “Quando vi que isso estava perto de acontecer comigo, tomei logo a decisão de denunciar, porque não quero isso pra mim. Tenho uma filha e não é esse exemplo que vou dar pra ela”, conta a jovem.

Quando percebeu, ela estava vivendo o mesmo tipo de relacionamento abusivo da sua mãe. Reconheceu os sinais na hora. Não havia violência física, mas o controle, as difamações e a perseguição eram evidentes. A situação escalou após o término, com o ex-companheiro usando a filha de cinco anos para vigiá-la e fazendo constantes ameaças. “Eu estava cansada das mensagens que ele enviava sempre me difamando e querendo me controlar. Nós já estávamos separados, mas ele não aceitava o fim. Até que um dia eu estava em um lugar e ele disse que eu não dava atenção a nossa filha e ficou mandando mensagem dizendo que eu estava com outros homens, me difamando. Procurei a delegacia, fiz um boletim de ocorrência por perseguição e pedi a medida protetiva”, conta.

 

 

A jovem integra o perfil de mulheres assistidas pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE). Segundo a pesquisa anual realizada pelo Núcleo, em Fortaleza, entre janeiro de 2023 e junho de 2024, as mulheres entre 26 a 45 anos (34,8%), negras (86,3%), apenas com o ensino médio (43,3%), solteiras (54,4%) e que vivenciaram situação de violência na casa dos pais (36%), quando criança ou adolescente, são as que mais buscam atendimento da instituição.

A psicóloga Úrsula Goes atua no Nudem Fortaleza e alerta para um ciclo que passa por gerações. Ela enaltece a coragem de Maria, e tantas Marias, ao denunciar o primeiro sinal de violência. “O que percebemos é a evidência do que chamamos de ‘filhos e filhas da violência’. As pessoas que foram criadas em ambiente familiar abusivo tendem a naturalizar e normalizar a violação. Há nos atendimentos muitas referências sobre o quanto a mãe sofreu, ou a avó, e que era pior do que ela está passando no momento. Assim, a violência vai se perpetuando, adoecendo gerações”, aponta.

Ela explica que uma criança que cresce em um ambiente hostil, coercitivo e abusivo pode apresentar complicações emocionais e sociais. “O que pode desencadear ainda na primeira infância transtornos de aprendizagem, transtornos afetivos e de personalidade, impactando por toda a vida”, pontua.

Ainda de acordo com os números do Nudem, a  violência psicológica sofrida por Maria supera, em números, todas as outras formas de violência. A Lei Maria da Penha trata especificamente da violência doméstica e familiar contra a mulher, e o Art. 7º enumera cinco formas de violências que as mulheres podem sofrer. Na maioria dos casos, a violência psicológica (95,6%) está presente juntamente com as demais: moral (54%), patrimonial (27,8%), sexual (16,2%) e física (55,7%). E quanto maiores forem a vulnerabilidade e as práticas abusivas as quais as mulheres estão submetidas, há maior dificuldade em buscar e resgatar direitos e quebrar o ciclo da violência doméstica.

O olhar de Maria durante o atendimento com a defensora Ana Kelly Nantua é assustado, parece sempre em alerta. Para ela, o boletim de ocorrência e a medida protetiva são atos de segurança e uma forma de romper um ciclo que perdura gerações. “Violência não é só a pancada, empurrão. Eu sei muito bem o que é violência porque vivi com ela. Então, no primeiro sinal, eu lembrei quando eu era criança. Hoje em dia, o povo ainda acha que a mulher é muito frágil. Mas fazemos mil coisas em uma hora só. Somos fortes sim”, reforça.

No Nudem Fortaleza, que funciona dentro da Casa da Mulher Brasileira, a jovem levou toda a documentação para dar entrada na ação de guarda unilateral da filha e pedir pensão alimentícia. Essas são algumas das principais demandas das mulheres que buscam pelo Núcleo, que inclui ainda partilha de bens, regulamentação do direito de visita, divórcio, queixa-crime, medida protetiva, reconhecimento e dissolução de união estável. Na capital cearense, as mulheres são acolhidas por uma equipe integralmente feminina. São três defensoras públicas, uma psicóloga, uma assistente social, além de uma assessora, colaboradoras e estagiárias que realizam os primeiros atendimentos.

 

Defensora Ana Kelly Nantua atua no Nudem Fortaleza, que fica na Casa da Mulher Brasileira, no bairro Couto Fernandes

 

A defensora pública Anna Kelly Nantua enaltece o trabalho realizado e reforça que a violência não tem classe social nem idade. “Atendo aqui muitas senhoras, que têm mais de 60 anos e passaram anos em um relacionamento violento e só buscaram ajuda depois de encaminharem os filhos para a vida. Muitas chegam aqui acompanhadas das filhas, que não aguentam mais ver o sofrimento que as mães passaram ao longo da vida. Escutamos aqui muitas tragédias pessoais que representam as mazelas de uma sociedade que precisa mudar. É evidente que precisamos criar uma cultura de apoio e proteção para mulheres de todas as idades, garantindo que nunca mais se sintam sozinhas ou desamparadas em momentos de vulnerabilidade. A sociedade precisa reconhecer e combater as raízes profundas da violência doméstica, promovendo um ambiente seguro e respeitoso para todas”, frisa a defensora.

A história de Maria é um exemplo de superação. A decisão de se proteger e proteger a filha é um reflexo da força que encontrou dentro de si, decidida a não repetir o ciclo de violência que marcou a própria infância. “Eu não vou tirar o B.O. Decidi fazer e ele vai existir pra sempre. A medida protetiva, se depender de mim, eu não tiro. Isso é um modo de eu me sentir segura”, ela diz. E se permite sonhar alto, para nunca mais deixar se repetir o que ela mesma passou. “Quando eu era criança, me falaram que amor era não deixar faltar nada em casa. Não é só isso. Eu cuido da minha filha e falo ‘eu te amo’, porque nunca falaram para mim. Quero que ela veja que o bom caminho do amor é trabalhar, nunca tirar o que é dos outros e não baixar a cabeça pra homem”.