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Na antessala da Casa, Maria quer recomeçar: por ela e pelos filhos 

Na antessala da Casa, Maria quer recomeçar: por ela e pelos filhos 

Publicado em
Texto e foto: DEBORAH DUARTE
Ilustração: Valdir Marte

Historicamente, as mulheres foram vistas como o sexo frágil e, por muitos anos, suas funções eram tradicionalmente restritas aos cuidados com o lar, filhos e marido. Mas para quem tiver a possibilidade de sentar poucos minutos na recepção da Casa da Mulher Brasileira (CMB), que acolhe vítimas de violência doméstica e familiar em Fortaleza, percebe rapidamente que a característica fraqueza não faz parte do repertório feminino. Aliás, nunca fez.

Dar o primeiro passo e denunciar as  agressões sofridas é uma atitude de muita coragem, porque a  violência contra a mulher é um fenômeno complexo, influenciado por construções históricas e culturais de gênero, além de envolver questões étnico-raciais, de classe e de geração.

Em mais uma ida à CMB, conhecemos Maria. Mulher negra, de 39 anos, que trabalha em uma clínica de estética como massoterapeuta e ainda atende clientes em domicílio para complementar a renda. Em abril deste ano, ela tomou uma decisão difícil, mas necessária, após um episódio violento em casa. O ex-companheiro, pai do filho mais novo, de dez anos, e padrasto da filha de 14 anos, agrediu fisicamente tanto ela quanto os filhos. Durante a discussão, ele deu um murro na cara do menino e dois tapas na adolescente, ambos tentando defender a mãe das agressões.

A violência não era novidade no relacionamento, embora a física tivesse sido a primeira vez. Antes, o agressor manifestava comportamento abusivo verbalmente e foi agressivo quando a mulher tentou terminar o relacionamento. Mesmo sem conhecimento profundo da legislação, ela sabia da possibilidade de obter uma medida protetiva. Depois do episódio violento, foi à delegacia com os filhos. Todos foram submetidos a exame de corpo de delito, que registrou as marcas das agressões.

“Meus filhos ficaram nervosos. Quando vi os dois naquela situação, eu tinha que tomar uma decisão. Não posso ficar com um homem desse. Eu abri a medida protetiva, ele já foi intimado e desde esse dia não apareceu mais. Foi a primeira vez que ele me bateu. Era agressivo com palavras, mas bater assim, de deixar roxo, nunca aconteceu. Eu tenho medo mesmo é de morrer, de acontecer alguma coisa comigo ou com os meninos quando eu estiver indo para o trabalho”, conta.

O medo de Maria é real diante de tantos casos de mulheres mortas pelos companheiros. Dados divulgados em junho deste ano pelo Monitor de Feminicídios no Brasil expõem um aumento alarmante nos assassinatos de mulheres em todo o país. Segundo os números mais recentes, foram registrados 750 crimes consumados e 2.007 casos de feminicídios consumados e tentados. Em 2023, dados apontam em mais de 1,4mil.

Maria compartilha a dor de ver os impactos da violência nos filhos. A adolescente, que já sofria de depressão, ficou profundamente traumatizada com o episódio. O menino, além de lidar com o autismo, passou a ter comportamentos agressivos na escola, refletindo o ambiente de medo e tensão no qual viveu.

Depois de denunciar e ter a medida protetiva, Maria estava na Casa da Mulher Brasileira buscando a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) para dar entrada na ação de revisão do valor da pensão alimentícia do filho, que poderia ser de R$ 296. A irmã do agressor presenciou as agressões e é quem está depositando R$ 200 para contribuir com os custos do garoto.

A defensora pública Anna Kelly Vieira Nantua fala sobre a complexidade na garantia de direitos após a violência sofrida dentro de casa. “Muitos casos que acompanhamos temos a informação que, após a intimação da medida protetiva, o agressor não retorna mais, deixando, inclusive, de pagar a pensão dos filhos. Mas essa mulher que consegue romper o ciclo da violência e sair do relacionamento abusivo, precisa de suporte na garantia de todos os seus direitos e para a qualificação profissional. Isso porque verificamos, nas nossas pesquisas internas, que cerca 31% das mulheres se referem à dependência financeira como uma dificuldade de sair do relacionamento. Para elas, este recomeço é de extrema importância, pois estar no mercado de trabalho significa resgatar a própria identidade“, destaca Anna Kelly.

De acordo com a psicóloga Úrsula Góes, atuante no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), da Defensoria, o mais complexo na realidade da mulher em um relacionamento abusivo são fatores emocionais envolvidos na construção das diversas formas de dependências. “O que acontece entre as paredes da residência não há testemunhas e na relação abusiva aquele que é o herói é também o maior algoz da capacidade operacional e realizadora desta mulher. As portas até podem estar abertas literalmente, mas as amarras emocionais fortalecidas pelo medo constante de perdas e agressões são grandes grades e algemas que as mantêm no ciclo da violência”, destaca.

O episódio na vida de Maria é um triste reflexo da realidade de muitas mulheres que vivem sob a sombra da violência doméstica, buscando coragem para romper o ciclo e proteger as próprias famílias. Atualmente, a mulher tenta reconstruir sua vida e garantir a segurança dos filhos. Apesar de ainda se sentir insegura e desconfiada, encontra forças na fé de um futuro melhor.

“Não aceito apanhar. Não apanhei dos meus pais para apanhar de homem? Recomeçar é difícil, mas necessário. A casa ficou destruída durante a briga, fora o medo constante que carrego, porque ele chegou a me ameaçar de morte. Ele disse que, se eu não fosse dele, não seria de mais ninguém. Estou aqui fazendo os procedimentos que preciso, garantindo os direitos dos meus filhos e a qualidade de vida pra eles,  mas hoje eu me sinto segura só com a mão de Deus”, resume Maria.