
“Se a mulher não chega na política pública, o Estado tem que chegar nela”, afirma Maria da Penha sobre os 18 anos da lei que leva seu nome
Texto: Bruno de Castro
Foto: Reprodução/Defensoria Pública do Ceará
A farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes tinha 38 anos quando o então marido tentou matá-la duas vezes. Era 1983, o Brasil vivia uma ditadura cívico-militar e ela passava a uma condição definitiva de pessoa em cadeira de rodas. Os atentados do ex-companheiro – à bala e por eletrocussão – deixaram-na paraplégica.
Desde então, quatro décadas passaram e Maria da Penha viu ser criada, em 2006, após 23 anos do crime, uma lei com o seu nome para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. O mecanismo é hoje considerado o terceiro melhor do mundo para este fim, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). E completa 18 anos.
Em alusão à maioridade da Lei Maria da Penha, celebrada nesta quarta-feira (7/8), a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) publica entrevista com a ativista cearense, que desde 2009 conduz uma organização sem fins lucrativos com sede em Fortaleza e representação no Recife para estimular e contribuir com a aplicação da legislação. O instituto se propõe ainda a monitorar a implementação e o desenvolvimento de melhores práticas e políticas públicas na área.
No bate-papo, Penha revela episódios que a estimulam a continuar na luta por um mundo menos violento contra mulheres, faz uma leitura crítica da lei ao dizer que ela ainda não está devidamente implementada no país e sugere caminhos para o poder público capilarizar ainda mais a rede de apoio às vítimas.
Confira.
DEFENSORIA: Nesses 18 anos de existência da lei, o que a senhora destacaria?
MARIA DA PENHA: Eu acho que a boa imprensa tem feito um papel muito importante. Mesmo quando denuncia um feminicídio, ela mostra que a lei foi falha por não conseguir evitar que aquela mulher fosse assassinada. E, nesse momento, se pode levar em consideração que naquele município não existiam determinadas políticas públicas que poderiam ter evitado o crime. Isso já leva uma crítica ao município e não fica só no fato de a mulher ter sido assassinada.
Então, é muito importante a imprensa estar atenta. Mas, de uma maneira geral, o que a gente escuta é o agradecimento de muitas mulheres. Pelo o que a lei fez na vida delas. Às vezes, eu tô num local e chega alguém que diz: “deixa eu tirar uma foto com a senhora? A minha mãe foi salva pela lei”. Que a lei salvou a vida dessas pessoas. Quando eu viajo e tô no aeroporto, as pessoas me reconhecem e dizem: “se não fosse a sua lei, talvez eu não estivesse viva”. Isso é muito gratificante! E olha que a lei ainda não está devidamente implementada. Imagine se estivesse!
Mas ainda são muitas as mulheres que estão sendo assassinadas e a gente se surpreende. Apesar da lei, ainda tem tantos assassinatos. A gente sabe que homens morrem em brigas de trânsito, porque beberam demais numa mesa de bar etc, mas as mulheres morrem dentro das suas próprias casas. E quem são os autores dessas mortes? As pessoas que deveriam protegê-las. E o resultado dessa morte: quantas crianças ficam na orfandade? Essa criança, se tiver uma condição financeira boa, vai ter acompanhamento psicológico e amenizar a situação. Mas e se não for? Que acompanhamento psicológico tem? Nenhum.
O que eu estou dizendo é: a lei está fazendo 18 anos e essas vítimas invisíveis que ficaram órfãs já têm, no mínimo, 18 anos de idade. Que acompanhamento essas crianças tiveram? Eu não falo nem só de acompanhamento individual, mas de acompanhamento grupal, por faixa de idade.
Nesse sentido, as escolas podem descobrir algum comportamento que pode indicar que aquela criança é órfã devido ao feminicídio. Essas crianças podem ser atendidas pelo Estado através de parceria para capacitar os professores a identificarem sinais e ajudar a reestruturar essas crianças, senão elas vão levar pra vida adulta o que aprenderam. Vão levar pra vida pessoal o conhecimento que têm sobre o racismo, a homofobia e outras formas de violência.
DEFENSORIA: Os dados violência crescem porque as mulheres estão denunciando mais? Ou surgiram outras formas de violência?
MARIA DA PENHA: Eu acho que os dados aumentaram por diversos fatores. Mas o que a gente acha que pode diminuir esse aumento já está escrito na lei, no artigo oitavo, inciso sétimo: a capacitação da Polícia Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e de todos profissionais envolvidos na aplicação da lei quanto às questões de gênero, raça e etnia. Quer dizer: todos têm que ser capacitados permanentemente para que não ocorra mau atendimento numa casa-abrigo, num centro de referência… Por isso que eu digo da importância de os órgãos terem uma ouvidoria para denunciar esse mau atendimento.
Além disso, o destaque nos currículos escolares em todos os níveis de ensino, desde o fundamental até o nível superior, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero, raça e etnia, e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Depois que fizermos isso, vamos ver se não vão diminuir os casos! Claro que vão!
DEFENSORIA: Qual avaliação a senhora faz da capacitação das pessoas que atendem essas mulheres vítimas de violência doméstica e familiar? Muitas delas se queixam que, quando policiais são acionados, ouvem deles que o caso é apenas uma “briga de casa”, desqualificando o discurso dessa mulher…
MARIA DA PENHA: Eu acho que se existe essa queixa por parte da vítima é porque está faltando capacitação [de quem a atende]. Porque se a vítima for bem atendida e for considerado que aquele fato é uma violência, e como violência tem que ser tratado, ela não vai dizer isso. Mas se o policial diz que é mais uma briga de casal é porque ele não está capacitado. Não está exercendo a sua função devidamente capacitado. E isso fortalece o agressor.
DEFENSORIA: Recentemente, o Governo do Estado divulgou o número de 21 unidades de Casas da Mulher Cearenses, incluindo as casas municipais, que vão ser mais 17. Mas o Ceará tem 184 municípios. Como a senhora avalia o esforço dos municípios pra que as mulheres tenham atendimento adequado?
MARIA DA PENHA: Eu acho que a Casa da Mulher é muito importante. Mas eu acho que no pequeno município, por menor que seja, deve existir um centro de referência dentro da unidade de saúde. Que ele sirva para orientar a vítima. E, se ela estiver correndo risco de morte, que esse centro de referência leve essa mulher para uma macrorregião onde exista delegacia da mulher, onde exista uma casa-abrigo, onde as crianças dessa vítima sejam acolhidas na escola e onde ela seja capacitada para desenvolver uma profissão.
Então, tendo esses quatro itens, ela vai sair da situação de violência: ela tem onde denunciar; os filhos não vão interromper os estudos; ela vai continuar trabalhando; e ela vai estar com um amparo do centro de referência. Ela pode até não voltar mais pro município dela, mas ele vai estar com uma medida protetiva para não se aproximar dela. E, se ele voltar, tem condição de ter um patrulhamento para algum risco que ela sofra. Se ela não puder voltar, que ela seja encaminhada para outro município onde possa desenvolver sua atividade profissional de maneira segura com os filhos.
Não tendo independência financeira, ela vai ficar sempre à mercê de uma pessoa. E, civilmente, ela pode receber ajuda financeira dele. Mas ele bota no banco e ela recebe no banco, sem ele saber onde ela está. Ele vai cumprir a obrigação de pai. De ajudar a manter os filhos. E ela vai ter uma profissão, que vai dar pra ela ter condição de sair daquela situação. E o Estado tem que ajudar essa mulher. Existem condições pra isso. O que falta é uma integração. Pelo amor de Deus, trabalhem isso!
DEFENSORIA: Uma pesquisa da Defensoria revela que a maioria das vítimas foi agredida na frente dos filhos ou o agressor foi uma criança que conviveu em um ambiente violento. Gostaria que a senhora comentasse essa realidade considerando que o Instituto Maria da Penha trabalha com a conscientização de crianças e adolescentes nas escolas…
MARIA DA PENHA: A criança, se ela convive com a violência doméstica, ela sofre e apresenta comportamento diferenciado na escola. Se os professores e psicólogos da escola são capacitados para conhecerem essas situações e levarem o assunto para a sala de aula de uma maneira que as crianças entendam, já é uma maneira de a criança dizer que a mãe sofre violência.
Eu vi uma vez uma reportagem que mostrava que foi falado na sala de aula sobre os tipos de violência, mandaram fazer uma redação e um aluno escreveu o seguinte: “chame a Polícia, que meu pai bate na minha mãe”.
Comigo aconteceu um caso interessante há poucos dias. Eu estava num consultório médico e, quando eu saí da consulta, uma criança correu e se abraçou comigo, gritando: “é ela! É ela! É a Maria da Penha”. Eu tomei um susto e os pais dessa criança explicaram que ela teve uma aula sobre mim. Olha só a importância desse entendimento! A criança entendeu que eu estava ali representando uma aula que ele recebeu.
Você leva pra vida o que aprende na infância. Quando você não tem a oportunidade de mudar o que aprendeu errado na infância, você continua errado o resto da vida. E a violência contra a mulher é uma situação muito dramática. Agora pensa bem: a criança fica órfã. O pai mata a mãe. Quem vai acolher essa criança? A família da mãe ou a família do pai. O que essa criança vai ouvir pro resto da vida, dos dois lados? A família do pai diz o seguinte: “sua mãe não prestava. Por isso que seu pai matou ela”. E a família da mãe vai dizer: “o seu pai não prestava. Por isso que ele matou sua mãe”. Qual das duas famílias têm razão? A criança vai acreditar em quem? Cada uma quer defender o seu filho.
DEFENSORIA: E a maioria dos casos não tem acompanhamento psicológico…
MARIA DA PENHA: Tem que ter esse acompanhamento. Mas precisa de educação e política pública. Educar, como já determina a lei. Fazer o acompanhamento também das crianças que perderam as mães e vivem em comunidades agressivas.
Por isso, a importância dos centros de referência dentro da unidade de saúde. Mas tem que ter cartazes. Tem que ter informações. Tem que haver uma corrente entre os centros de referência, porque ela pode procurar os direitos dela num outro centro. Pensa bem: uma pessoa que mora num local que não tem centro comunitário e a escola não tem estrutura pra uma palestra, como ela vai ter informação? Em algo que ela ouviu na televisão uma vez na vida?
Se as mulheres não estão chegando na política, o Estado tem que arranjar um meio de chegar nessas mulheres. É difícil botar uma delegacia? Então bota um centro de referência da mulher pra ela ser atendida por uma equipe e ser encaminhada para outra região, onde outras políticas existem. Ela já chega encaminhada e protegida.
DEFENSORIA: Como a senhora lida com a narrativa de que seu ex-marido é que é a vítima do episódio que resultou na sua violência…?
MARIA DA PENHA: Eu fiquei muito decepcionada. Porque essas notícias põem em dúvida a minha história, que foi uma história extremamente ardilosa. Começou com a premeditação de um crime, quando eu fui quase assassinada enquanto dormia. Passei dois meses hospitalizada no HGF (no Hospital Geral de Fortaleza). Tive que ir pro Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, e, quando voltei, depois de quatro meses, eu fui vítima de cárcere privado e sofri uma segunda tentativa de homicídio. Foi quando eu estava proibida de receber amigos ou familiares.
Eu tomei conhecimento pela empregada de que a Polícia tinha estado na minha ausência em casa, tinha ouvido todas as pessoas da minha rua, tinha ouvido o vigia da casa da frente e que a vizinhança comentava que achava muito estranha aquela história que ele contava.
O que mais me fez sair de casa foi o cárcere privado. Tinha restrição até de beber água. Então, como é que uma pessoa tem a coragem de se insurgir contra uma história que foi descoberta pela Polícia? Uma pessoa que foi condenada pela Justiça duas vezes, mesmo com o julgamento dele tendo sido protelado por dez anos? Ele só foi preso pela pressão internacional! Mas, em muitos locais, a minha história foi desacreditada, fazendo, inclusive, com que mulheres ouvissem e acreditassem nessa fake news. Mulheres deram espaço pra isso!
Isso me abalou profundamente. E só não me derrubou porque o movimento de mulheres enfrentou comigo essa situação. E a proteção que eu recebi foi exatamente pelo fato de os agressores que fazem parte desse grupo de fake news querem manchar a minha imagem e desconstruir a minha história. Mas não vão conseguir. Está provado que foi tudo real.
DEFENSORIA: Nessas quase três décadas de ativismo, que avaliação a senhora faz da sua própria trajetória e onde ainda quer chegar?
MARIA DA PENHA: O que eu espero, e não sei se vou alcançar isso, é que a lei esteja devidamente implementada na medida que determina. Porque ela é uma das três melhores do mundo em defesa da mulher, segundo a Organização das Nações Unidas. Se a lei estiver implementada, onde eu estiver, vou estar muito feliz. E as mulheres também. E as famílias também. Porque a mulher sempre está no núcleo familiar. Elas que formam o caráter dos filhos. A gente precisa mudar o comportamento do homem, para ele respeitar o outro da mesma forma que gostaria de ser respeitado.
Quer assistir a trechos da entrevista? Clique aqui.
(Produção: Bruno de Castro, Déborah Duarte e Giulian Rodrigues/
Entrevista: Amanda Sobreira e Déborah Duarte)