“A mulher não é violentada somente no ato da violência”, diz especialista no #NaPausa
Na ordem do dia por conta do recente episódio envolvendo o jogador Robinho, o debate sobre machismo estrutural e a banalização do estupro pautou nessa quinta-feira (22/10) o #NaPausa, série de transmissões ao vivo que a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) criou para promover educação em direitos no Instagram.
Discutiram o tema a doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), professora Juliana Diniz, e a diretora da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP), defensora Patrícia Sá Leitão, que destacou dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2020. O documento foi divulgado essa semana pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP) e indica para 2019 a ocorrência de um estupro a cada oito minutos no Brasil.
Foram mais de 63 mil casos, sendo 70,5% envolvendo vulneráveis e 75% dos estupradores conhecidos das vítimas. “E esses são os números oficiais. Mas sabemos que muita gente não denuncia. Ou por vergonha ou por medo ou por não se sentir forte o suficiente. Se coloca a criminalização para enfrentar a violência contra a mulher. Ela é necessária, mas o Direito Penal é aplicado quando já aconteceu a violência. Quais os mecanismos sociais temos que trazer à tona para que essa violência não aconteça? O respeito ao outro, independente do gênero, a prática de enxergar o outro como um sujeito de direitos, isso é pra ser discussão já nas escolas, para formarmos pessoas com uma visão mais igualitária e mais humana”, pontuou Patrícia Sá Leitão.
Mudanças na legislação brasileira como a que agora tipifica beijo roubado como estupro (e não mais como importunação sexual) também foram destacadas na live, assim como o machismo ainda presente na Justiça Criminal. “A mulher não é violentada somente no ato da violência. Ela passa por um ciclo de violência e é violentada também pela seletividade que o Judiciário dá ao caso dela. A mulher pensa duas vezes se vai à delegacia porque não sabe como vai ser recebida pela autoridade policial”, ponderou Juliana Diniz.
A professora ressaltou a ligação da prática do machismo com questões culturais, de formação identitária de sujeitos na qual a mulher “tem” que ser submissa, dócil, carinhosa e passiva enquanto o homem “precisa” ser viril, expansivo, violento e manifestar poder. Tudo isso desde a infância e agravando-se a cada fase de desenvolvimento do indivíduo.
Conforme a doutora em Direito, o machismo penaliza também os homens. “Muitos não conseguem se adequar a essa masculinidade marcada pela agressividade. E quem não se adequa à norma passa por algum tipo de censura. Foi assim com as mulheres que ousaram transgredir normas no decorrer da história. É difícil trabalhar no âmbito legislativo se não tiver uma mudança cultural. Existe um esforço coletivo de transmitir uma série de valores, princípios e conhecimentos pra quem nasce no sexo feminino e pra quem nasce no sexo masculino.”
Ela criticou o tratamento dado por parte da opinião pública ao caso do jogador Robinho, condenado por estupro na Itália e anunciado como reforço do Santos justo no dia de combate à violência contra a mulher. “Esse caso é muito paradigmático. A gente teve acesso ao teor das manifestações, que são odiosas e chocantes, mas os dirigentes do clube estavam mais interessados em saber quem ia fazer gol. Isso prova que existe uma tolerância com a prática [do estupro]. É uma compreensão de que as mulheres são suscetíveis de serem violadas.”
Por isso, Juliana Diniz defendeu uma maior representatividade feminina em todos os âmbitos do sistema de segurança pública e de justiça. Segundo ela, o cenário hoje é favorável ao Estado ser violento [no campo simbólico, de prejudicar o acesso à proteção e à garantia de direitos] com a mulher já violentada e fragilizada física e psicologicamente.
“A gente pode ter uma legislação revolucionária e que contemple penalização alta pra violência contra a mulher, mas o sistema pode tornar essa legislação inefetiva porque existe uma reatividade dos agentes. Desde a autoridade policial até quem vai executar a pena. O Estado pode ser violento ao não contemplar a conduta [estupro] como crime e agindo seletivamente quando é tolerante com certas práticas. Precisamos fazer um debate sério sobre termos mais mulheres ocupando espaços de aplicação do Direito pelo Estado”, pontuou a professora.
Ainda de acordo com a doutora em Direito, é fundamental a construção de uma cultura de não repressão à mulher e ao feminino, para que todas possam ter, por exemplo, liberdade para experimentação sexual sem o peso do julgamento da sociedade. “A mulher hoje ainda é muito reprimida. O corpo da mulher ainda é visto como objeto de desejo dos homens para satisfazer o desejo. A gente precisa educar os homens a entenderem o sujeito feminino como um sujeito de direitos. E que precisa ser respeitado na sua dignidade fundamental. Se a garota não tem vontade [de transar], você, homem, só tem uma alternativa: aceitar”, reforçou Juliana Diniz.
O #NaPausa é transmitido semanalmente no perfil da @defensoriaceara do Instagram. As lives são fruto de parceria da ESDP com a Associação dos Defensores Públicos do Ceará (Adpec).
