
Defensoria reflete sobre a decisão do STF que classifica como usuária a pessoa detida com até 40g maconha
Com maioria de votos, ficou decidido nesta terça e quarta-feira (25 e 26), a descriminalização do porte pessoal de maconha em parâmetro de 40 gramas ou 6 pés da planta cannabis sativa para diferenciar usuário de traficante. O Supremo Tribunal Federal deu interpretação ao artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei AntiDrogas, em repercussão geral reconhecida (RE 635.659), fixando tese.
“Importante que se esclareça que a conduta de portar esta quantidade deixa de ser crime, então, o que o STF decidiu foi pela descriminalização da maconha, e isso é diferente da legalização: na descriminalização aquela situação ou a conduta deixa de ser crime, ou seja, não vai ter mais punição no âmbito penal. No entanto, se o ato de portar continua sendo um ato ilícito, pode ter sanção civil ou administrativa”, explica a defensora pública Lívia Soares, que atua em Limoeiro do Norte.
Considerando as formas distintas de descriminalização e de legalização, 25 países já flexibilizaram o uso da cannabis. Em 17 destes, as regras foram mudadas a partir de 2010, o que mostra uma atualização recente dos entendimentos sobre a substância. Na opinião dos defensores cearenses, a recente decisão do STF não alcança uma vanguarda no tema, mesmo após uma espera de 13 anos, mas delineia um debate importante sobre segurança pública, racismo estrutural, desigualdade e saúde pública.
O defensor Igor Barreto, que atua na Defensoria em Sobral, lamenta que a decisão terá pouca repercussão na prática. Para ele, “pode-se supor que as abordagens policiais seletivas, direcionadas especialmente a pobres, pretos e periféricos não serão modificadas”, analisa. Acredita ainda que a realidade só muda quando “se decidir de modo abrangente acerca da regulamentação da compra e venda de maconha em mercados regulados, como ocorre em diversos outros países”, completa.
Igor pontua que o julgamento poderia ter sido um marco, mas ficou confuso quando os votos dos ministros passaram a divergir entre si. “Acompanhando o julgamento foi latente a dificuldade de os próprios Ministros se entenderem. Divergiam muito e em muitos pontos, chegando ao cúmulo de um ministro (Dias Toffoli) ter proferido um voto tão indecifrável que ele próprio teve de voltar e dizer que o voto era ‘claríssimo’ e que ‘nenhum usuário, de qualquer droga, poderia ser preso’, o que fugia completamente do debate”, disse.
Com essa decisão, o STF, pela primeira vez, estabelece um critério que avança da subjetividade. Para a defensora que atua na Defensoria de Delitos sobre Tráfico e Uso de Substâncias de Entorpecentes de Fortaleza, Paula Brito, as balizas ainda deixam lacunas. “Entendo que ainda há outros pontos a serem discutidos, como a condenação baseada unicamente nos depoimentos policiais, por exemplo, mas creio a decisão da Suprema Corte permitirá avanços e evitará prisões indevidas na medida em que reduz a discricionariedade das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário”, disse. “Contudo, este critério não é absoluto, mas uma presunção relativa que pode ser afastada se ficar provado que a droga não seria usada para consumo próprio”, reflete Paula.
Opinião compartilhada pelo defensor Aldemar Monteiro, supervisor das Defensorias Criminais da capital. “Nada impede que o delegado de polícia ou o membro do Ministério Público, diante de outras provas, como balança de precisão, caderno de anotação, interceptação de WhatsApp, entenda que mesmo sendo uma quantidade inferior a 40 gramas, essa droga era para fins de comercialização e aí nós teríamos o tráfico em vez de porte para consumo pessoal”, complementa.
Para ele, a questão da saúde deveria ter sido ampliada na reflexão. “A Corte perdeu a oportunidade de estender o entendimento para outros tipos de droga. E com isso, deixa de fora, dessa descriminalização, o dependente químico de crack, que consiste na maioria. Infelizmente, o crack é que tem uma potencialidade de dependência, então as pessoas em situação de rua, normalmente, não usam maconha, usam crack. E por hora, a decisão é restrita a maconha e não se estende a outros tipos de droga”.
Fator também salientado pela defensora Lívia Soares, já que, muitas vezes, os usuários são pacientes que precisam de apoio clínico. “As pessoas que são a favor da criminalização sempre acham que uma forma de diminuir o uso, de evitar problemas com a droga é proibindo. Existem estudos em outros países que legalizaram, de modo até mais amplo do que no Brasil, e mostram que a legalização não aumentou e nem teve impacto significativo no número de usuários. Então é importante esclarecer que é uma forma de ver é como uma questão de saúde pública e não com a criminalização”, frisa.
Os defensores acreditam que algumas poucas pessoas podem ser beneficiadas e o próprio STF indica a realização de mutirões nacionais, pela Defensoria Pública, para ver quantas poderiam se enquadrar no novo entendimento.
Racismo Estrutural em pauta – As audiências de custódia têm trazido menos casos de usuários de pequena monta enquadrados como traficantes, segundo os defensores, realidade mais comum nos Juizados Criminais. Em dias de jogo de futebol, em Fortaleza, por exemplo, pode chegar a 80% das ocorrências a abordagem de usuários nos estádios.
Nestes dias, a Defensoria atende muitas ocorrências advindas do porte de substâncias. O defensor Vagner de Farias, que atua no GT do Juizado do Torcedor, explica que é possível visualizar a questão discriminatória da pobreza e racismo nas abordagens. “A abordagem, muitas vezes, tem um critério social, racial e discriminatório, apesar de o STF ter mencionado que não se pode abordar de uma forma discricionária, sabemos que, na prática, são os torcedores mais humildes, negros que são abordados e, quando se encontra uma pequena quantidade de droga, naquela ‘atitude suspeita’ – a qual a própria Suprema Corte menciona que deveria ser com fundadas razões – são levados ao Juizado. Sabemos, na prática, que as ‘fundadas razões’, muitas vezes, são critérios discriminatórios, infelizmente”, detalha.
Para ele, a descriminalização mais ampliada poderia proteger os usuários de enfrentar o racismo presente na vida social. Essa é uma das questões mais criticadas e endossadas pela Defensoria, é que no fundo, a decisão não avança no combate ao encarceramento causado pelo racismo estrutural no Brasil. “A questão não avança no que é o maior problema, que hoje é o que podemos chamar de ‘critério alegado’ pela autoridade policial: conduta social e antecedentes. Este critério na verdade está imerso em outro mais profundo, que é a cor da pele e o território”, relembra a defensora e assessora de relacionamento institucional, Lia Felimisno.
A defensora relembra uma pesquisa que mostra a diferença entre a quantidade de porte por uma pessoa branca e por uma pessoa negra são diferentes nas análises policiais ao enquadrar o usuário e traficante. Dados estes também destacados no voto do ministro Alexandre Morais. “O branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto e pardo para ser considerado traficante. Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante”, disse o ministro.
Para Lia Felismino, a decisão pouco avança os efeitos práticos do punitivismo seletivo visto nas periferias País afora. “As nossas angústias continuarão a ser muitas e muito provavelmente a decisão do STF não vai alterar o quadro dramático que existe hoje”, finaliza. Decisão compartilhada pelo defensor Victor Montenegro, titular da Defensoria em Caucaia. “A Lei de Drogas falha em seu objetivo principal de proteger a saúde pública. Ao invés disso, gera um ambiente propício para o crime organizado e perpetua um ciclo de violência e encarceramento”, pondera.