“É preciso construir uma sociedade antirracista”, afirma ouvidora-externa da Defensoria da Bahia
Um programa de trainee exclusivo para candidatos negros, lançado em setembro último pela rede Magazine Luiza, provocou uma série de discussões acerca de políticas afirmativas voltadas para pessoas pretas e pardas. Entre questionamentos e elogios, o movimento da rede de varejo esteve entre as pautas abordadas pelos convidados do webinário “Ações e Políticas Afirmativas e seus significados no combate ao racismo”, que ocorreu na segunda-feira (14/12). Esta foi a quarta edição de um ciclo de capacitações que é realizado desde agosto com temática étnico-racial. Para o ano de 2021, adianta Patrícia Sá Leitão, está sendo elaborado um calendário de atividades, cursos e webinários, que serão divulgados em breve.
Falar sobre políticas afirmativas, na percepção da assistente social Sirlene Assis, é falar sobre reparação e equidade. “O estado brasileiro tem uma dívida com a população negra”, pontua a feminista negra e vice-presidenta do Conselho Nacional de Ouvidorias Externas das Defensorias Públicas, durante fala no webinário. Ela é assertiva: o racismo é estrutural e, para superar isto, é preciso, antes de tudo, entender a estrutura desta sociedade.
“A política de cotas é importante para promover um pouco de igualdade nesse sistema brasileiro. E quem acessa essas cotas é uma parcela privilegiada da população, inclusive”, ela contextualiza. Sirlene se refere à Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre a chamada Lei de Cotas, no ingresso de estudantes em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. A lei versa sobre a disponibilidade de 50% de vagas nos certames que devem ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
“É preciso construir uma sociedade antirracista”, provoca Sirlene. “Para combater o racismo não tem de ser preto, mas o protagonismo tem de ser nosso. O racismo afeta toda a população brasileira. A Constituição diz que somos todos iguais, mas não é bem assim. Temos que construir novos modos de sociedade”.
As políticas afirmativas, na percepção da defensora pública Mariana Lobo, vão além da política de cotas. “Ainda é um passo muito tímido, hoje, na realidade brasileira. Temos muito o que comemorar, como o Estatuto da Igualdade Racial, mas a gente tem muitos desafios ainda”, acredita a coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC).
A diretora da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP), defensora pública Patrícia Sá Leitão, lembra que, em em novembro deste ano, mês em que se comemora a Consciência Negra, a Defensoria Pública do Estado do Ceará anunciou uma importante política afirmativa para combater a desigualdade étnico-racial: a instituição passa a reservar vagas exclusivamente a negros e negras nos concursos e seleções públicas que promover. “Isso não foi nada além da nossa obrigação enquanto instituição que promove direitos humanos e que busca a igualdade”, comenta. “As ações afirmativas são uma reparação histórica e uma forma de a gente tentar diminuir essa desigualdade que foi construída ao longo dos anos. O que a gente quer, enquanto Defensoria, enquanto instituição pública, é promover esse debate, trazer a questão antirracista, trabalhar ações e políticas afirmativas”.
O advogado, ator, professor e ativista do Movimento Negro, Haroldo Guimarães, explicou, durante o webinário a importância das políticas afirmativas para negros e negras no Brasil. O professor busca explicação embasada no decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969, que promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, para falar sobre a reparação histórica.
No artigo 1, ele frisa, está previsto: “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais”. Haroldo resume: “as pessoas têm igualdade perante à lei, mas devem ser tratadas diferentes quando forem diferentes”.
O fundador do coletivo Ceará Criolo, jornalista e escritor Bruno de Castro, corrobora com as falas de Sirlene e Haroldo ao comentar que falar sobre políticas de cotas e de reparação é “um debate urgente e necessário”. “A cota não é um mero preenchimento de vagas. É uma oportunidade que você está dando para que aquela pessoa tenha um desfecho de vida diferente do que a mãe, o avô, a bisavó tiveram. E não é só entrar. A gente esbarra no desafio de manter esse aluno no ambiente universitário, manter com bolsas, com apoios institucionais, para a pessoa se manter na instituição mesmo, para a pessoa ter o que comer, ter onde morar. Não é simplesmente distribuir essas vagas”.
Para Bruno, é muito sintomático falar sobre política de cotas em um estado como o Ceará. “A gente, aqui, cresce ouvindo, inclusive nos ambientes educacionais, que o Ceará é um estado que não tem negro. A gente rejeita a existencia do povo negro, a importância do povo negro para a nossa formação histórica desde a base”.


