Em sentença, juíza associa ‘raça’ ao cometimento de crimes e Defensoria discute o tema
Na última semana, ganhou repercussão o caso de uma juíza de Curitiba que associou a cor da pele de um homem negro ao cometimento de crimes. A decisão condenou sete pessoas por organização criminosa, dentre elas estava Natan Viera da Paz, de 42 anos, e , para embasar seu entendimento, afirmou que o réu é “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”.
O caso aconteceu em junho, mas só tomou repercussão nacional depois que o advogado comentou nas mídias sociais a decisão. O Judiciário não concedeu a Natan a presunção da inocência: um princípio jurídico básico presente na Constituição. Infelizmente, o caso dele não é isolado. Pelo país afora é possível identificar casos em que a cor da pele condena. Para debater o assunto, a Escola Superior da Defensoria Pública do Ceará promoveu mais uma edição do #NaPausa, projeto que promove discussões virtuais, entre o defensor público Leandro Bessa, supervisor do Núcleo Especializado em Execução Penal (Nudep), e Deise Benedito, mestre em Direito e Criminologia pela UNB.
Deise tem uma longa trajetória no movimento negro, notadamente no feminismo negro, onde fundou o Geledés – Instituto da Mulher Negra e presidiu a Fala Preta – Organização de Mulheres Negras, além de atuar no campo dos Direitos Humanos, onde se especializou em Política Criminal e Penitenciária. Ela começou o debate explicando como o Estado brasileiro ergueu-se sob a égide do uso desmedido da força contra a população indígena e africana durante o período colonial e a escravagista.
A convidada da Defensoria falou que a prática da tortura sempre foi utilizada na sociedade brasileira, introduzida no período da colonização através de tratamentos cruéis e sevícias praticadas contra os povos indígenas, seguidos de sessões de espancamentos sendo amplamente utilizada contra a população africana no Brasil na condição de escravos. “Existe uma história de punição no Brasil. A disciplina dos corpos dos escravizados servia como exemplo a outros africanos que se insubordinassem a jugo do escravismo e dos maus tratos. Depois disso, o uso da força por agentes do Estado continuou sendo uma constante, ganhando as páginas dos jornais durante o período da ditadura militar, onde a tortura e os maus tratos ganharam ainda mais dimensões dentro da lógica de repressão”, contextualizou.
O defensor público Leandro Bessa destacou que há uma polícia seletiva, que faz a primeira abordagem e leva à autoridade policial, que só escuta esse lado, o Ministério Público apresenta essa denúncia e o juiz sentencia. “Essa é a construção de uma identidade criminosa negra”, lembrou. Ele destacou a importância dos debates da Defensoria Pública. “O racismo e o preconceito ainda estão enraizados na cultura, e o trabalho de conscientização sobre essas questões precisa ser reforçado. Falta respeito, independentemente de cor, raça, gênero, religião, condição social ou qualquer outra questão”, reforça.
Em 2017, a Agência Pública, analisou mais de 4 mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo. O levantamento dividiu as sentenças entre negros e brancos, classificou-as como condenados, absolvidos, condenados em parte e desclassificados, quando o réu é condenado não por tráfico, mas por posse de drogas para consumo. A pesquisa mostrou que os negros são os mais condenados proporcionalmente por tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Do total de pessoas negras sentenciadas, cerca de 71% foram condenadas por todas as acusações feitas pelo Ministério Público.
“Vocês que trabalham na Defensoria Pública reconhecem mais do que ninguém a ausência de políticas públicas e aí podem se perguntar: Como enfrentar uma sociedade que naturaliza o racismo? Um dos caminhos é esse que estamos participando, promovendo debates como esses que vocês estão fazendo, discutindo o tema para desmitificar e esclarecer muita coisa”, destacou Deise.
Analisando ainda mais a questão, Deise falou que a ausência de defensores públicos é uma forma de racismo estrutural. “Você coloca aquele que acusa em palácios com mais de 300 funcionários, enquanto a Defensoria Pública, que é a única opção da população pobre, negra e vulnerável, tem poucos defensores públicos, com menos concursos e uma demora enorme para dar posse a aqueles que passaram no concurso. Isso também é um dos processos do racismo estrutural. O papel da Justiça é o da equidade. É preciso sair dos castelos e colocar o pé no barro. Só assim para conhecer o mundo”, destacou Deise.


