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“Não podemos transformar o machismo e o racismo em desculpas para não vencê-los”, afirma juíza Andréa Pachá na Live 100 do #NaPausa

“Não podemos transformar o machismo e o racismo em desculpas para não vencê-los”, afirma juíza Andréa Pachá na Live 100 do #NaPausa

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Depois de quase um ano e meio promovendo conversas sobre direitos humanos, pautas jurídicas e assuntos de interesse social, o #NaPausa chegou à centésima edição nessa quinta-feira (15/7). Para brindar o momento, a defensora pública geral Elizabeth Chagas recebeu a juíza Andréa Pachá para uma conversa sobre “Humanização da Justiça ou judicialização do humano?”.

“A justiça não é um fato da natureza. Ela integra a humanidade. É uma invenção, uma forma encontrada para substituir a força pela palavra. Nesse sentido, não há distinção entre o humano e o justo. O que eu vejo é a necessidade de refletirmos sobre a humanização do atendimento das pessoas que chegam ao Judiciário”. A fala de Andréa Pachá deixa destacada a importância do compromisso com a humanização do judiciário, a fim de garantir que o cidadão tenha um atendimento digno, que ultrapasse a superficialidade e frieza.

Ela lembrou ainda que ninguém vai à justiça porque gosta. “As pessoas vão porque precisam fazer prevalecer algum direito ou porque estão sendo demandadas. Nesse momento, já que a justiça é uma construção do humano, qualquer cidadão que chegue ao judiciário precisa ter a escuta que merece”, destacou Pachá.

A defensora pública geral Elizabeth Chagas relembrou a conquista da Constituição Federal e todos os direitos por ela assegurados, e questionou a caminhada do Judiciário ao longo de todos estes anos para garantir que as pessoas consigam acessá-los.“O ano de 1988 representa a conquista de muitos direitos. Mas, de lá pra cá, os profissionais que fazem a ponte para efetivação desses direitos tornaram-se mais humanos? E ainda: como lutarmos para não termos o encastelamento das nossas instituições? É preciso falar, propor formas de fazer com que o Sistema de Justiça se aproxime cada vez mais da sociedade. Aqui, na Defensoria, temos o Orçamento Participativo, a posse popular, uma Ouvidoria Geral Externa, formas de fomentar esta integração e entendimento de que a instituição caminha junto com o povo.”

Ouvir a frase “não quero resolver nada hoje, só quero ser ouvida” foi um desabafo recorrente nos atendimentos feitos  pela defensora geral nos oito anos nos quais Elizabeth  Chagas atuava no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria (Nudem). Ela reforça que possibilitar um espaço de escuta acolhedor é indispensável. “Me deparei por inúmeras vezes com mulheres que só queriam estar em lugar seguro para desabafar, serem ouvidas sem julgamentos, apontamentos, de forma livre. Não acredito que podemos falar efetivamente de justiça e direitos sem oferecer essa escuta qualificada, atenta, que demonstra empatia e respeito”, ponderou.

As debatedoras refletiram na live como a intolerância tem sido um gatilho para o aumento da judicialização. “Vivemos em um contexto de forte intolerância, unida ao anseio pelo imediatismo e as pessoas acabam não conseguindo mais resolver seus problemas. Coisas que poderiam ser resolvidas de uma forma mais simples ainda chegam ao judiciário. Nos deparamos com uma necessidade constante de judicialização de temas e questões pequenas”, frisou Elizabeth Chagas.

O cenário de precariedade e fragmentação das relações, com fortalecimento do ódio, da falta de diálogo, entre rupturas e divisões, foi colocado durante a conversa como uma realidade cada vez mais forte. “Perde-se a capacidade de amar, de reconhecer o outro, onde qualquer contrariedade dentro de conflitos cotidianos precisa ser remetida a alguém. A sociedade está precisando retomar as rédeas da própria vida, pois uma sentença não pode resolver conflitos. É difícil ensinar o que parece óbvio”, elencou a juíza.

Andrea Pachá contextualizou: “tem um caso que até conto no meu primeiro livro sobre um casal que foi à justiça para eu decidir em qual escola o filho deles iria estudar. Não tinha divergência sobre o valor da mensalidade, posicionamento religioso ou ideológico. Era só  a questão da vontade de cada um. Fiquei tão perplexa com a natureza dessa demanda. De lá pra cá, piorou a forma de comunicação profundamente e demandas que se pensavam que jamais chegariam à justiça têm chegado. A sociedade está infantilizada e é assustadora a qualidade das solicitações e os tipos de conflitos que têm sido levados à Justiça. Então, essa reflexão é fundamental. Estamos contribuindo ou legitimando, substituindo a vontade das pessoas por uma decisão que não soluciona o conflito?”.

Elizabeth Chagas destacou o valor da reflexão conjunta. “É muito bom ouvi-la e podermos estimular debates e reflexões. Hoje, além da alegria da live 100 que bem representa o espírito de persistência e perseverança que vem nos movendo desde nesses últimos dois anos, comemoramos uma grande conquista que foi a aprovação, dentro da Assembleia Legislativa, que instituiu a política pública social e afirmativa que reserva vagas para candidatos negros e negras, quilombolas e indígenas em concursos públicos e processos seletivos da Defensoria. Isso também faz parte do processo de pensar quem entra na instituição, de dar acesso, de repensar toda nossa história, o racismo estrutural, toda a construção da sociedade, precisamos ir além em nossas reflexões”, destacou a defensora geral.

Fortalecendo a luta pela superação das mazelas estruturais, Elizabeth Chagas compartilhou o anseio de compreender como em um país que conta com uma constituição evoluída padecemos de males tão devastadores quanto o machismo e racismo estrutural. “Sou uma feminista! Desde criança eu discutia essas questões e hoje, depois de tanto tempo, ainda vemos o machismo reverberar, trazendo questões que de fato precisam ser judicializadas, porque a mulher ainda é tratada como coisa.”

Em consonância, Andréa Pachá ressaltou que as pautas do feminismo e do racismo precisam fazer parte do cotidiano. “Não podemos transformar o machismo e racismo em desculpas para não vencê-los. Nós vivemos essa desigualdade, essa brutalidade de gênero e raça especialmente em razão da nossa história, da formação da nossa sociedade. Temos que acordar com disposição para vencer e perceber o quanto reproduzimos o racismo e o machismo sem nos dar conta, com a compreensão da urgência em afirmar isso individualmente. Depois de perdermos mais 500 mil pessoas [para a Covid-19], temos que acordar todo dia reconhecendo o valor fundamental da vida.”

O papel estratégico da promoção da educação em direitos fechou o debate da live 100 do #NaPausa. “Trabalhar esse tema em parceria com a dra. Andréa Pachá foi muito gratificante. O desejo é de que a gente divulgue cada vez mais esses temas tão indispensáveis e que possamos ir colaborando para o renovo. Nesta pandemia, todos perdemos muito e cada um teve suas perdas pessoais. Pessoas próximas, outras que não conhecemos, mas elas não são números, fazem parte da vida de alguém. São mães, pais, filhos. Precisamos ter consciência de que é necessário parar e refletir, entender que isto aqui é tudo passageiro e que precisamos aproveitar para amar. Abrir mão da disputa para amar o outro, amar a diversidade; é dessa sensibilidade que precisamos no nosso dia a dia como um todo. O amor é a chave, a fórmula”, concluiu Elizabeth Chagas.

“Aqui foi um espaço de respiração. Espero que a gente vença esse vírus, esse momento tão triste que o Brasil atravessa, e que depois possamos olhar pra trás e ver que mesmo nesse momento tão crítico ainda temos disposição para nos reunirmos e falarmos sobre algo tão essencial à vida: a humanização”, concluiu Andréa Pachá.