Posso ajudar?
Posso ajudar?

Site da Defensoria Pública do Estado do Ceará

conteúdo

“Nós estamos a todo tempo apenas utilizando de palavras bonitas para algemar e escravizar pessoas”, destaca promotor baiano durante live do #Napausa

“Nós estamos a todo tempo apenas utilizando de palavras bonitas para algemar e escravizar pessoas”, destaca promotor baiano durante live do #Napausa

Publicado em

O procedimento criminal brasileiro engloba duas fases: a investigação criminal e o processo penal. A investigação criminal é um procedimento preliminar, de caráter administrativo, que busca reunir provas para iniciar a ação penal. O processo penal é o procedimento principal, de caráter jurisdicional que resolve se a pessoa acusada deverá ser condenada ou absolvida. Ao conjunto dessas duas fases, dá-se o nome de persecução penal.

A relação entre a persecução penal e o tráfico de drogas foi tema do projeto #NaPausa da última sexta-feira (24) entre a defensora pública Lia Felismino e o promotor de justiça da Bahia, Saulo Mattos. O debate virtual aconteceu no Instagram e é fruto de uma parceria entre a Escola Superior da Defensoria Pública e a Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do Ceará.

Durante a live, a defensora pública citou uma pesquisa da Agência Pública, que analisou mais de 4 mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo em 2017. O levantamento dividiu as sentenças entre negros e brancos, classificou-as como condenados, absolvidos, condenados em parte e desclassificados, quando o réu é condenado não por tráfico, mas por posse de drogas para consumo. Comparou-se os resultados tendo em vista o recorte racial. Além disso, foram tabuladas as quantidades de drogas apreendidas nesses processos, que envolveram diretamente 4.754 réus.

A pesquisa mostrou que os negros são os mais condenados proporcionalmente por tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Do total de pessoas negras sentenciadas, cerca de 71% foram condenadas por todas as acusações feitas pelo Ministério Público, somando um total de 2.043 réus. No caso dos brancos este percentual cai para 67%, um total de 1.097 réus. Enquanto a frequência de absolvição é similar – 11% para negros, 10,8% para brancos –, a diferença é de quase 50% a favor dos brancos nas desclassificações para “posse de drogas para consumo pessoal”: 7,7% entre os brancos e 5,3% entre os negros.

“Essa pesquisa foi capaz de mostrar que o Poder Judiciário é um instrumento de opressão racial no país, o que já era nítido e costumávamos ver no nosso dia a dia nas varas criminais, por exemplo, se tornou ainda mais claro”, destacou a defensoria pública Lia Felismino.

O promotor de justiça da Bahia, Saulo Mattos, falou sobre o assunto. “O sistema de justiça criminal atua com bases racistas. E, quando eu quero falar de racismo no processo penal, não estou falando de racismo caricatural não, onde você vai estar chamando o réu de macaco ou desrespeitar uma advogada ou um promotor de justiça por ser negro, ter um olhar enviesado. Ao se estabelecer uma diferença social pelo princípio de raça, em que uma branquitude não consegue enxergar as heranças de privilégios sociais históricos e continua tratando o indivíduo enquanto coisa ou até um patamar abaixo de coisa, nós estamos a todo tempo apenas utilizando de palavras bonitas para algemar e escravizar pessoas”, criticou.

Autodeclarado negro, Saulo Mattos destacou: “Eu tenho ao meu favor a proteção estatal, porque sou promotor de justiça. Mas até se descobrir que eu sou do Estado tudo muda como num passe de mágica. A Defensoria Pública, a partir do momento que presta assistência às pessoas hipossuficientes, não se torna menos elitista, porque, no final das contas, ela se faz do uso institucional, porque tem que fazer isso. Ela é unilateral. E o Ministério Público quer ser ao mesmo tempo parte e garantidor no seu processo e você não consegue ter a expectativa real de quando ele vai ser fiscalizador da lei.”

Saulo destacou a atuação da Defensoria Pública de São Paulo no Recurso Extraordinário nº 635.659, contra uma condenação criminal de um usuário flagrado com 3 gramas de maconha. No recurso, a Defensoria Pública questionou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 – que classifica como crime o porte de entorpecentes para consumo pessoal – à luz do inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, que assegura o direito à intimidade e à vida privada.“O porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’ (objeto jurídico do delito de tráfico de drogas), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”, apontou o recurso.

Até o momento já proferiram voto no recurso três ministros do Supremo: Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O Ministro relator votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e a favor da aplicação de punições administrativas para os usuários. O processo está para manifestação do Ministério Público de São Paulo.

“Eu sempre disse que na sala de audiência em vez de ter um crucifixo tivesse ali também fotos do sistema de justiça carcerário, principalmente, da sua cidade. Para que não se esquecesse que ali em sala de audiência enquanto se decide por uma prisão preventiva para o encarceramento você está mandando uma pessoa para um campo de concentração. Então, o papel da Defensoria e do promotor que se respeite é constranger o sistema, com elegância, com tranquilidade e pautar essa questão”, destacou Saulo.

A defensora pública destacou a importância de debate sobre o assunto com outra instituição. “Discutir sistema de justiça, processos de tráfico de drogas, discutir a forma como esse sistema pune, encarcera, viola direitos, dentro de uma perspectiva interinstitucional, falar com um promotor, por exemplo, nos dá a possibilidade de crescimento, de estabelecimentos de protocolos mínimos de segurança jurídica, de resguardar o direito da população que é mais vulnerabilizada”, destacou Lia.